“FAZEI O QUE ELE VOS DISSER!”

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Leituras: Is 62,1-5; Sl 95; 1Cor 12,4-11 Evangelho: Jo 2,1-11

SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM

Santos Padres:

1) São Cirilo de Alexandria, doutor da Igreja (séc. V) Comentário ao Evangelho de São João 2,1 (PG 73, 223-226)

“Cristo santifica, com a sua presença, a própria fonte da geração humana”. Cristo começa a realizar milagres em um momento oportuno, mesmo que a ocasião para iniciar sua obra de taumaturgo pareça proporcionada por circunstâncias casuais. Porque, como se celebravam bodas – castas e honestas, é verdade –, às quais se faz presente a mãe do Salvador, também ele veio com seus discípulos aceitando um convite, não tanto para participar do banquete quanto para fazer o milagre, e desta forma santificar a própria fonte da geração humana, no que diz respeito sobretudo a carne. De fato, era muito conveniente que aquele que vinha para renovar a própria natureza humana e reconduzi-la em sua totalidade a um nível mais elevado, não se limitasse a repartir sua bênção aos que já tinham nascido, mas que preparasse a graça também para aqueles que haveriam de nascer, santificando o seu nascimento. Com sua presença reabilitou as núpcias, ele que é a alegria e o júbilo de todos, para afastar do parto a entranhada tristeza. Aquele que é de Cristo é uma nova criatura. E Paulo insiste: O antigo passou, tudo se fez novo. Então, ele veio para as bodas. Realmente convinha que acompanhassem ao taumaturgo os que eram tão entusiastas ao extraordinário, para que recolhessem como alimento de sua fé a experiência do prodígio.

Nisso, começa a faltar o vinho dos convidados, e sua mãe intercede para que se disponha a ajudar, como é sua acostumada bondade e benignidade. Diz-lhe: Eles não têm mais vinho. Exorta-lhe a realizar o milagre, supondo que tem o poder de fazer o que quiser. Mulher, deixa-me, ainda não chegou a minha hora. Resposta do Salvador perfeitamente calculada. Porque não era oportuno que Jesus se apressasse a realizar milagres nem que espontaneamente se oferecesse para fazê-los, mas que o milagre deveria ser fruto da condescendência a uma petição, dado que, ao conceder a graça, tivesse mais a verdadeira utilidade do que a admiração dos espectadores. Da mesma forma, as coisas desejadas são mais agradáveis, se não se concedem imediatamente. Portanto, ao ser um pouco diferida a concessão, a esperança sublima a petição. Porém, Cristo nos demonstrou com o seu exemplo o grande respeito que se deve aos pais, ao condescender, em atenção a sua mãe, a fazer o que não queria.

2) São Romano o Melodioso, diácono (séc. VI) Hino sobre as Bodas de Caná

Queremos narrar agora o primeiro milagre realizado em Caná por aquele que outrora tinha demonstrado o poder de seus prodígios aos egípcios e aos hebreus. Naquela ocasião, a natureza das águas foi mudada milagrosamente em sangue. Ele tinha castigado aos egípcios com a maldição das dez pragas e tinha tornado o mar inofensivo para os hebreus, a tal ponto que o atravessaram como em terra firme. No deserto, lhes proveu da água que prodigiosamente manou da rocha. Hoje, durante a festa das bodas, realiza uma nova transformação da natureza, aquele que tudo cumpriu com sabedoria. Enquanto Cristo participa das bodas e a multidão dos convidados banqueteava, faltou o vinho e a alegria pareceu mudar-se em melancolia. E o esposo estava envergonhado, os servidores murmuravam e aflorava em todas as partes o descontentamento por tal escassez, erguendo-se o tumulto na sala. Frente a tal espetáculo, Maria, a plenamente pura, mandou advertir apressadamente ao seu Filho: “Não tem mais vinho. Filhinho, eu te peço, demonstra o teu poder absoluto, tu, que tudo cumpriste com sabedoria…” Cristo, respondendo a Mãe que lhe dizia: “concede-me esta graça”, contestou prontamente: Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou. Alguns procuraram entrever nestas palavras um significado que justifique sua impiedade. São aqueles que sustentam a submissão de Cristo às leis naturais, ou o consideram, até mesmo a ele, vinculado às horas. Mas isto é porque não compreendem o significado da palavra. A boca dos ímpios, que meditam o mal, é obrigada a silenciar pelo milagre imediatamente realizado por aquele que tudo cumpriu com sabedoria.

“Meu Filho, responde agora – disse a Mãe de Jesus, a plenamente pura. Tu que impões às horas o freio da medida, como podes esperar a hora?, meu Filho e meu Senhor? Como podes esperar o tempo, se tu mesmo estabeleceste os intervalos do tempo, ó Criador do mundo visível e invisível, tu que dia e noite diriges com plena soberania e segundo tua discrição as evoluções imutáveis? Foste tu que estabeleceste a carreira dos anos em seus ciclos perfeitamente regulados: Como podes esperar o tempo propício para o prodígio que te peço, tu que cumpriste tudo com sabedoria?”

“Antes que tu notasses, Virgem venerada, eu já sabia que faltava o vinho”, respondeu, então, o Inefável, o Misericordioso, à Mãe veneradíssima. “Conheço todos os pensamentos que habitam em teu coração. Refletis-te no teu interior: ‘A necessidade incitará, agora, o meu Filho ao milagre, porém com a desculpa de que a horas o estão atrasando’. Ó Mãe pura, aprende agora o motivo do atraso, e quando o tenhas compreendido, certamente te concederei esta graça, eu que tudo cumpri com sabedoria.”

“Eleva teu espírito à altura de minhas palavras e compreende, ó incorrupta, o que estou para pronunciar: No mesmo instante em que do nada criava o céu, a terra e a totalidade do universo, podia instantaneamente introduzir a ordem em tudo o que eu estava formando. Contudo, estabeleci certa ordem bem subdividida; a criação feita em seis dias. E certamente não porque me faltasse o poder de realizar, mas para que o coro dos anjos, ao comprovar que fazia cada coisa ao seu tempo, pudesse reconhecer em mim a divindade, celebrando-a com o seguinte canto: ‘Glória a ti, Rei poderoso, que cumpriste tudo com sabedoria’.”

“Escuta bem isto, ó santa: Eu poderia resgatar de outra maneira aos caídos, sem assumir a condição pobre e de escravo. Aceitei, contudo, minha concepção, meu nascimento como homem, o leite de teu seio, ó Virgem, e assim tudo cresceu em mim segundo a ordem, porque em mim nada existe que não seja deste modo. Com a mesma ordem quero agora realizar o milagre, ao qual consinto pela salvação do homem, eu que tudo cumpri com sabedoria.”

“Entende o que estou dizendo, ó santa; quis começar pelo anúncio aos israelitas, por ensinar-lhes a esperança da fé, para que, antes dos milagres, saibam quem ordenou e conheçam com certeza a glória de meu Pai e sua vontade, já que ele quer firmemente que eu seja glorificado por todos. Realmente, quanto realiza aquele que me gerou, eu também posso realizá-lo, por ser consubstancial a ele e ao Espírito, eu que tudo cumpri com sabedoria.”

“Se somente houvesse manifestado isto nos prodígios admiráveis, eles teriam compreendido que sou Deus desde antes de todos os séculos, mesmo que me tenha feito homem. Mas agora, contrariamente à ordem e até mesmo antes da pregação, tu me pedes prodígios. Eis aqui o porquê de meu delongo. Pedia-te que esperasse «a hora de realizar milagres, por este único motivo. Mas como os pais devem ser honrados pelos filhos, terei consideração para contigo, ó Mãe, visto que tudo posso fazê-lo, eu que tudo cumpri com sabedoria.”

“Diz, pois, aos habitantes da casa que se coloquem a meu serviço seguindo as ordens: que eles em breve serão, para si mesmos e para os demais, as testemunhas do prodígio. Não quero que seja Pedro o que me sirva, nem tampouco João, nem André, nem nenhum dos apóstolos, por temor que depois, por sua causa, surja entre os homens a suspeita de fraude. Quero que sejam os próprios criados que me sirvam, porque eles mesmos se converterão em testemunhas daquilo que me é possível, a mim que tudo cumpri com sabedoria.”

Dócil a estas palavras, a Mãe de Cristo se apressou a dizer aos servidores da festa de bodas: Fazei o que ele vos disser. Havia na casa seis talhas, como nos ensina a Escritura. Cristo ordena aos servidores: Enchei-as de água. E prontamente foi feito. Encheram de água fresca as talhas e ali permaneceram, esperando o que tentava fazer aquele que tudo cumpriu com sabedoria.

Agora, quero referir-me às talhas e descrever como foram enchidas por aquele vinho, que procedia da água. Como está escrito, o mestre tinha dito em alta voz aos servidores: Tirai este vinho que não provém da vindima, o ofereça aos convidados, enchei as taças vazias, para que todo mundo o desfrute e também o próprio esposo; porque a todos dei a alegria de forma imprevista, “Eu que tudo cumpri com sabedoria”.

Sendo que Cristo mudou publicamente a água em vinho graças ao seu próprio poder, todo mundo se encheu de alegria considerando muito agradável o sabor daquele vinho. Hoje podemos sentar-nos ao banquete da Igreja, porque o vinho se transformou no sangue de Cristo, e nós o assumimos em santa alegria, glorificando ao grande Esposo. Porque o autêntico Esposo é o Filho de Maria, O Verbo que existe desde a eternidade, (aquele) que assumiu a condição de escravo e que tudo cumpriu com sabedoria.

Altíssimo, Santo, Salvador de todos, mantém inalterado o vinho que existe em nós, tu que presides todas as coisas. Precipita daqui aos que pensam mal e, em sua perversidade, adulteram com a água teu vinho santíssimo: porque diluindo sempre teu dogma em água, condenam-se a si mesmos ao fogo do inferno. Porém preserva-nos, ó Imaculado, dos lamentos que seguirão ao teu juízo, tu que és misericordioso, pelas orações da santa, virgem Mãe de Deus, tu que tudo cumpriste com sabedoria.

3) São Fausto de Riez (séc. V) Sermão na Epifania 5,2 (PLS 3, 560-562)

“É melhor e mais forte o vinho do Evangelho” Três dias depois celebravam-se bodas. Que outras bodas podem ser estas, senão as promessas e alegrias da salvação humana? As mesmas que se celebram, evidentemente, ou por causa da confissão da Trindade, ou pela fé na ressurreição, como se indica no mistério do número três. Assim como também em outra das leituras evangélicas se recebe com cantos, música e pompas nupciais o retorno do filho mais jovem, ou seja, a conversão do povo gentio. Por isso, como o esposo que sai de seu aposento, desceu o Senhor até a terra para unir-se, mediante a encarnação, com a Igreja, que tinha de congregar-se entre os gentios, para a qual deu seu penhor e seu dote: o penhor, quando Deus se uniu com o homem; o dote, quando se imolou por sua salvação. Por penhor entendemos a redenção atual, e por dote, a vida eterna. Todas estas coisas eram, para aqueles que as viam, outros milagres; para aqueles que as entendiam, outros mistérios. Porque, se observarmos bem, de alguma maneira na própria água se dá certa analogia do batismo e da regeneração. Porque, enquanto uma coisa se transforma em outra, enquanto a criatura inferior se transforma em algo superior mediante uma secreta conversão, conclui-se o mistério do segundo nascimento. Rapidamente se modificam as águas que irão transformar os homens. Assim, pelo poder de Cristo, na Galileia a água se transforma em vinho – isto é, conclui a lei e lhe sucede a graça; afasta-se o que não era mais do que sombra, e se faz presente a verdade; o carnal se coloca junto ao espiritual; a antiga observância se converte em Novo Testamento; como diz o apóstolo: o antigo passou, o novo começou; e como aquela água que era contida nas tinas, sem deixar de ser de jeito algum o que era, começou a ser o que não era, da mesma forma a lei, manifestada pelo advento de Cristo, não perece, mas se aperfeiçoa. Se falta vinho, se traz outro: o vinho do Antigo Testamento é bom, mas o Novo é melhor; o Antigo Testamento, que observam os judeus, dilui-se na letra, enquanto que o novo, que é o que nos corresponde, converte em graça o sabor da vida. Trata-se de “vinho bom” sempre que ouças falar de um bom preceito da lei: Amarás ao teu próximo e odiarás ao teu inimigo. Porém, é melhor e mais forte o vinho do Evangelho, como quando ouves dizer: Eu, porém vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai pelos que vos perseguem.